À ESPERA DO ARCO-IRIS
Raios e trovões assustadores fizeram-me acordar. A chuva forte dava sinais de muitos problemas nos próximos dias. A água, antes pura, vem morro abaixo, soterrando casas, obstruindo estradas. Passei o resto da noite em claro. Sabia que teria muito trabalho no dia seguinte, mas não conseguia dormir. Bem cedo, fui trabalhar, e, de fato, o cenário era o que eu imaginava. Enchente, lama, desabrigados, pobreza...Precisava dar tudo de mim. E trabalhar me ajudava a desviar a atenção de outra tragédia.
A cena deprimente não saia do meu pensamento. Sentia o corte na carne e na alma. Como é que aquilo tudo estava acontecendo? Desde quando? Estávamos casados há apenas 03 meses, e, até então, eu nada sabia. Ele, completamente seduzido, não ligava pra mim.
Na minha limitada compreensão humana, não entendia nem aceitava. Toda uma vida desmoronando e, eu, perplexa, atordoada, paralisada. Seria uma crise existencial interferindo no nosso relacionamento conjugal? Não, era mais que isso: era grave demais, feio demais. Senti vergonha e preferi tentar resolver com ele, sem que outras pessoas ficassem sabendo. Tivemos uma longa conversa e, juntos, decidimos que o melhor seria um tratamento. Procuramos uma clínica especializada, marcamos a consulta, mas na hora marcada, só eu apareci. Não o localizei em canto algum. Como o programa de tratamento era extensivo à família, e, naquele momento, eu era o familiar mais afetado, comecei, então, meu processo de cuidado comigo mesma.
Nos 03 anos de namoro, nos preparamos afetiva e economicamente para vivermos sob o mesmo teto. E chegou o momento certo. A cerimônia do nosso casamento se deu num período de muitos acontecimentos. Ele, no último período da faculdade, além da preparação para o casamento, estava, também, às voltas com a redação da monografia, a festa de formatura, e a tão esperada promoção no trabalho. Fiquei feliz e orgulhosa com tantas coisas boas, ao mesmo tempo, acontecendo na vida do homem que escolhi como companheiro e parceiro de vida.
Como um temporal que alaga, parece que seus sonhos, acalentados por muito tempo, resolveram se realizar num rompante, sem deixar tempo para assimilação dos fatos, para aceitar que coisas boas podem acontecer à pessoa.
Numa noite quente de verão, enquanto ele me esperava no altar, caminhei ao seu encontro, ouvindo, palavra por palavra, “Eu sei que vou te amar”. E ao ouvir – por toda a minha vida – estava ao seu lado, de braços dados. Padre, convidados, testemunhas, minha mãe, a música e nós. Cenário perfeito para a felicidade. Estávamos, ali, oficializando o contentamento da união, do encontro, da vontade de se constituir família. E ouvi – “até que a morte os separe...” Nossa viagem de núpcias foi rápida, pois com o novo cargo na empresa, ele não pôde entrar de férias.
Mas, com as águas de março, vejo tudo se acabando: ele completamente apaixonado por ela e eu impotente, sem ação ou reação. Desde aquela noite, a descida foi rápida: a enxurrada arrastou tudo o que encontrava pelo caminho, e nela, vi, de perto, a degradação humana. Continuamos morando sob o mesmo teto por mais 10 meses, mas o casamento, o encantamento e cumplicidade já não mais existiam. Continuava com a aliança recebida na cerimônia, mas não me sentia casada. Mantendo as aparências, lutei, desesperadamente, para livrá-lo daquela obsessão.
Noites e dias com o aperto no peito, o coração disritmado, a boca seca, o medo e a dor de aceitar o fracasso. Para enfrentar a tempestade que também me afetava e, não me deixar arrastar, além da psicoterapia, passei a tomar antidepressivo e ansiolítico, pois entendi que precisava de um suporte que me ajudasse a enfrentar aquele estado lastimável no qual me meti. Falei com minha mãe e com os amigos mais próximos, na esperança de que eles interviessem. Contei tudo, sem reservas, pois precisava urgentemente de ajuda, para mim e para ele. Não podia vacilar. Precisava encontrar uma saída que fosse menos dolorosa.
Ele se deixava consumir. O homem bonito, com quem me casei, agora estava esquelético, com o olhar evasivo, às vezes dissimulado. No desespero, acreditando ser uma questão de escolha, arrisquei. Ou ela ou eu. E, para o meu desespero, ele escolheu. Em pouco tempo, seu dilúvio particular o arrastou para o fundo, para o vazio e a solidão. Foi perdendo tudo que levara anos para conquistar: saúde, emprego, amigos... foi se perdendo no turbilhão de águas selvagens. Perdeu tudo, e, principalmente, perdeu-se de si mesmo.
E, em mais uma noite insone, madrugada adentro, esperei e ele não chegou . Pela manhã, já com o raiar do dia, chegando ao hospital, tive a confirmação. Overdose. Assim terminou.
Hoje, um sentimento de culpa ainda me atormenta: será que eu seria a diferença? Será que desisti muito cedo? Será que, comigo, ele encontraria forças para não se deixar seduzir? No fundo, penso que ele não suportou as maravilhas de um bom período de chuva, e se deixou seduzir pelo que lhe dava mais prazer: o poder de uma tromba, que se rompe no meio da noite, e não livra ninguém da fúria de suas águas.
E eu, após a tempestade, vivo momentos de intervalos entre o alívio e a tristeza. Sigo em frente, mantendo-me de pé, com o olhar no horizonte, à espera do arco-íris.
(ficção: qualquer semelhança é mera coincidência)
Raios e trovões assustadores fizeram-me acordar. A chuva forte dava sinais de muitos problemas nos próximos dias. A água, antes pura, vem morro abaixo, soterrando casas, obstruindo estradas. Passei o resto da noite em claro. Sabia que teria muito trabalho no dia seguinte, mas não conseguia dormir. Bem cedo, fui trabalhar, e, de fato, o cenário era o que eu imaginava. Enchente, lama, desabrigados, pobreza...Precisava dar tudo de mim. E trabalhar me ajudava a desviar a atenção de outra tragédia.
A cena deprimente não saia do meu pensamento. Sentia o corte na carne e na alma. Como é que aquilo tudo estava acontecendo? Desde quando? Estávamos casados há apenas 03 meses, e, até então, eu nada sabia. Ele, completamente seduzido, não ligava pra mim.
Na minha limitada compreensão humana, não entendia nem aceitava. Toda uma vida desmoronando e, eu, perplexa, atordoada, paralisada. Seria uma crise existencial interferindo no nosso relacionamento conjugal? Não, era mais que isso: era grave demais, feio demais. Senti vergonha e preferi tentar resolver com ele, sem que outras pessoas ficassem sabendo. Tivemos uma longa conversa e, juntos, decidimos que o melhor seria um tratamento. Procuramos uma clínica especializada, marcamos a consulta, mas na hora marcada, só eu apareci. Não o localizei em canto algum. Como o programa de tratamento era extensivo à família, e, naquele momento, eu era o familiar mais afetado, comecei, então, meu processo de cuidado comigo mesma.
Nos 03 anos de namoro, nos preparamos afetiva e economicamente para vivermos sob o mesmo teto. E chegou o momento certo. A cerimônia do nosso casamento se deu num período de muitos acontecimentos. Ele, no último período da faculdade, além da preparação para o casamento, estava, também, às voltas com a redação da monografia, a festa de formatura, e a tão esperada promoção no trabalho. Fiquei feliz e orgulhosa com tantas coisas boas, ao mesmo tempo, acontecendo na vida do homem que escolhi como companheiro e parceiro de vida.
Como um temporal que alaga, parece que seus sonhos, acalentados por muito tempo, resolveram se realizar num rompante, sem deixar tempo para assimilação dos fatos, para aceitar que coisas boas podem acontecer à pessoa.
Numa noite quente de verão, enquanto ele me esperava no altar, caminhei ao seu encontro, ouvindo, palavra por palavra, “Eu sei que vou te amar”. E ao ouvir – por toda a minha vida – estava ao seu lado, de braços dados. Padre, convidados, testemunhas, minha mãe, a música e nós. Cenário perfeito para a felicidade. Estávamos, ali, oficializando o contentamento da união, do encontro, da vontade de se constituir família. E ouvi – “até que a morte os separe...” Nossa viagem de núpcias foi rápida, pois com o novo cargo na empresa, ele não pôde entrar de férias.
Mas, com as águas de março, vejo tudo se acabando: ele completamente apaixonado por ela e eu impotente, sem ação ou reação. Desde aquela noite, a descida foi rápida: a enxurrada arrastou tudo o que encontrava pelo caminho, e nela, vi, de perto, a degradação humana. Continuamos morando sob o mesmo teto por mais 10 meses, mas o casamento, o encantamento e cumplicidade já não mais existiam. Continuava com a aliança recebida na cerimônia, mas não me sentia casada. Mantendo as aparências, lutei, desesperadamente, para livrá-lo daquela obsessão.
Noites e dias com o aperto no peito, o coração disritmado, a boca seca, o medo e a dor de aceitar o fracasso. Para enfrentar a tempestade que também me afetava e, não me deixar arrastar, além da psicoterapia, passei a tomar antidepressivo e ansiolítico, pois entendi que precisava de um suporte que me ajudasse a enfrentar aquele estado lastimável no qual me meti. Falei com minha mãe e com os amigos mais próximos, na esperança de que eles interviessem. Contei tudo, sem reservas, pois precisava urgentemente de ajuda, para mim e para ele. Não podia vacilar. Precisava encontrar uma saída que fosse menos dolorosa.
Ele se deixava consumir. O homem bonito, com quem me casei, agora estava esquelético, com o olhar evasivo, às vezes dissimulado. No desespero, acreditando ser uma questão de escolha, arrisquei. Ou ela ou eu. E, para o meu desespero, ele escolheu. Em pouco tempo, seu dilúvio particular o arrastou para o fundo, para o vazio e a solidão. Foi perdendo tudo que levara anos para conquistar: saúde, emprego, amigos... foi se perdendo no turbilhão de águas selvagens. Perdeu tudo, e, principalmente, perdeu-se de si mesmo.
E, em mais uma noite insone, madrugada adentro, esperei e ele não chegou . Pela manhã, já com o raiar do dia, chegando ao hospital, tive a confirmação. Overdose. Assim terminou.
Hoje, um sentimento de culpa ainda me atormenta: será que eu seria a diferença? Será que desisti muito cedo? Será que, comigo, ele encontraria forças para não se deixar seduzir? No fundo, penso que ele não suportou as maravilhas de um bom período de chuva, e se deixou seduzir pelo que lhe dava mais prazer: o poder de uma tromba, que se rompe no meio da noite, e não livra ninguém da fúria de suas águas.
E eu, após a tempestade, vivo momentos de intervalos entre o alívio e a tristeza. Sigo em frente, mantendo-me de pé, com o olhar no horizonte, à espera do arco-íris.
(ficção: qualquer semelhança é mera coincidência)
23 comentários:
É difícil comentar. Faço uso do ditado "Depois da tempestade vem a bonanza"
Abraço.
e tantas! tantas realidades, infelizmente. Parabéns pelo seu trabalho, menina! Que texto! Arrepiou-me de verdade. Beijo grande, prazer te conhecer :-)
Oi Paulo,
seja benvindo ao meu florescer. Obrigado por seu comentário. Às vezes, a ficção imita a realidade.
Um abraço
Jacinta
Ei Jacinta,
passo um tempinho sem olhar seu florescer e, quando olho...
Nossa, que produção.
Como sempre, um texto bem escrito, que me faz ver muitas realidades.
Assisti Meu nome não é Jony, e, ao ler esse conto, acabei por fazer uma ligação entre as histórias.
Que bom seria se todos tivessem a mesma oportunidade!
Um abraço
Cris
Jacinta, chego aqui...navegando ..gostei muito ..e vi que gostas de flores,também tenho algumas ...adorei a ficção, que as vezes é tão realidade....
bj
Jacinta,
A sua advertência no final do relato nos deixa com a dúvida sobre onde impera a ficção, onde é forte a realidade. Mas isso não importa, e, sim, a escrita fluente e sensível do relato. Gostei da analogia entre o interior da mulher e a turbulência externa. Abraços.
Não importa onde começa a realidade e termina a ficção, terminei de ler o texto e só consegui pensar "owwwww"!! Existem pessoas e situações que nos marcam, e a força de cada um mede-se pela capacidade que tem de erguer a cabeça e seguir em frente. Nem todos sobrevivem às tempestades com vontade de viver...
Beijo.
Emocionante o texto, com sua coisa nostálgica particular. Gostei, às vezes senti-me triste, às vezes com a sensação de esperança ou dúvida, não sei. Pelos detalhes - será que é possível descobrir qualquer coisa por detalhes? - me pareceu que isso tudo realmente aconteceu, não sei se contigo, com outro, mas é uma grande história, muito parecida com tantas outras de amor, repartição eterna e perda - além de aprendizados. Muito boas as tuas comparações, metáforas e tantas outras figuras. Um beijão!
Gostei das metáforas e das figuras que se permitiu no texto. Ficou forte e denso - a imagem da outra gera a curiosidade de imediato e a revelação do fim trás o alento de certa forma. É preciso seguir a frente, é preciso continuar, a menos que não se permita tal coisa.
Abraços
à espera do arco-íris, no horizonte, além-aquém, das tempestades, ou dentro delas, a nos levar ao relâmpagos dos gozos, nas calmarias de mares de ares, remamos, remares.
obrigado pelo comentário. te convido a uma outra leitura.
b
luis de la mancha.
ficção, realidade são sementes que brotam nesse mesmo jardim florecer.
Não importa a diferença ou a separação.
em primeiro lugar quero agradecer a tua visita e dizer que és sempre bem-vinda!
Gostei do teu blog, mesmo sendo ficção esse texto é bem real em muitos casamentos, em muitas vidas…
Beijinhos e uma boa semana
Oi, amiga: um bonito conto, de uma narrativa leve e enxuta! E se o fato é verídico ou não, não interessa. O que importa é a feitura do mesmo.
Um beijo contado...
Jacinta!
Que bela surpresa es te exelente texto! Nos envolve até a cumplicidade...
Adorei.
Beijos.
Agradecendo sua amável visita, tenho o prazer de encontrar um texto muito bem escrito e focando uma das maiores tragédias de nossa sociedade.
Quanto à questão de culpa, cada pessoa é responsável pelas suas opções e ninguém pode ajudar alguém que se não ajuda, não é?
Abraço.
Oi! Gostaríamos de convidá-la para conhecer nosso blog. Também somos contadores de histórias. Venha sim!
Braços!
Jacinta, fui perdendo o fôlego à medida que o relato ia se desenrolando, convencida de que você contava uma história real. Um imapcto de tão triste e, infelizmente, muitas vezes verdadeira. Um beijo.
Uma tempestade que acontece na vida de muitos e com resultados devastadores. Um drama da nossa sociedade. Pergunta a personagem se ela faria a diferença. Respondo-lhe que não. A diferença é marcada pelos que se sentem subjugados e a vontade que mostram em saír daquela prisão a que eles mesmos se submeteram. Pode haver (e deve) haver ajuda externa mas sem a vontade deles nada feito. A "heroína" da história , para eles é quase sempre outra. felizmemte que há excepções.
Muito realista o que aqui deixas.
Um beijo
Oi Jacinta, parabéns por seu texto, e apesar de ficção, nos mostra a realidade a flor da pele, nua e crua de um problema que me parece meio que sem solução, raramente vemos alguém sair desta situação, e quando consegue, acaba ficando com marcas para o resto da vida...Brigadim pela presença lá em meu blog...um abraço...boa quinta para você...
O que me comove nessa história é saber do poder de sedução que a cocaína exerce sobre mim. Tento ficar um tempo sem ela, mas ela sempre me vence. É como você disse: ela é mais importante que tudo naquele momento.
Só consigo pensar no "pq" e no "quando" é que começa a terminar. Depois vem: Foi minha culpa?
...E o arco-íris sempre vem!
Lindo!! Parabéns mais uma vez e obrigado pelo momento que me surpreende teus escritos. beijs.
Vejo mais realidade que ficção em seu texto. Uma coisa é certa, é questão de sobrevivência seguir em frente. Parabéns pelo belo texto.
Bjos,
Lúcia Elena
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