1.3.08

VAGANDO E DIVAGANDO: uma percepção

Olho e vejo alguém vagando pela vida: um ser que desafia a realidade, ignora o tempo e afeta as pessoas. Com seu jeito sem jeito, sem obrigações, sem horário, sem lugar, (mas que ocupa muito espaço), incita sentimentos de raiva, pena, medo e... compaixão. Do poder do Estado, parece intuir a existência da repressão. Em seus "ensaios" para o confronto, não se intimida: enfrenta a polícia, exigindo continência, e, em posição de sentido, berra:

_olhe a minha patente
eu sou coronel
Toma juízo soldado

Tendo a rua como endereço, ele incomoda, pois expõe, sem pudor, a face que ninguém quer enxergar diante do espelho. Por não ser dono de si, sobra-lhe liberdade e tempo para perambular pelas ruas, sentar-se nas pedras, brincar, xingar, gritar, e, passar o tempo sem saber em qual tempo ele passa. Do tempo cronológico nem faz idéia, passa horas olhando pro nada que dá pra lugar algum, e, garante, com entusiasmo, que está numa grande festa, recebendo amigos famosos, ou numa grande batalha, comandando os soldados.

– FOGO, FOGO, FOGO, descansarrrrrr

Passa o tempo e o tempo passa, prá mim e pro Zé. Tenho consciência do meu tempo interior, e sei que ele existe, independente de mim e da minha vontade; e, independente da vaga vida do Zé, o tempo é como é. Simplesmente existe, antes e depois. A certeza da finalização coloca-me em constante “conflito” frente ao desejo de realização de meus projetos. A convivência com alguém que vivencia a experiência de finitude e mantém a vontade, os sonhos e projetos, aflora, em mim, uma confusão de sentimentos e aspirações.

Na tênue distância que se estabelece entre mim e o Zé, vislumbro a possibilidade de que, talvez por aí, pelo desejo de realizações, se consiga fugir da realidade temporal e fazer o próprio tempo, pois a vida continua seu curso, seu percurso, mesmo na dicotomia entre vida e morte, realidade e fantasia. De novo, volto pro Zé: divagando, retorno ao tempo, penso em liberdade, e vejo que, por ser "livre" , o Zé continua na sua festa e na sua guerra.

Comando dado, comando obedecido? Qual nada. Por vezes a liberdade do Zé lhe custa caro. Gritos de horror, resistência, insistência...e o limite se impõe na vaga vida do Zé. Passa um tempo “sumido” da rua, e nesse tempo, ninguém reclama a sua falta. Mas , quando o Zé volta, volta com ele a desorganização de sentimentos, a rua fica cheia e o tempo fecha.

Depois de 15 dias internado, ele volta ao seu (não) lugar, contando que passara 06 meses num cruzeiro, com direito a show com Roberto. É... o Zé continua lá fora, ou aqui dentro, sobrevivendo na rua, percebendo o tempo do seu jeito. E, o tempo passa, o sol se põe, a chuva cai, o rio faz o seu percurso, o mar o recebe, os pássaros cantam, as crianças brincam, e com distinta percepção, o Zé continua vagando e eu, divagando sobre o tempo e a liberdade.

20 comentários:

Célia de Lima disse...

Jacinta, vc tem um jeito singular de escrever, e muito rico, muito envolvente. Um prazer vir aqui. Parabéns pelo competente trabalho. Beijos. Bom domingo! Boa semana!

Anônimo disse...

Janaina diz:
até einstein errou, certo? o tempo é também relativo, como já foi provado pela física, através de experimentos com velocidade. Mas saindo um pouco da fisica, o tempo é relativo pra nós mesmo fora da velocidade, simplesmente pelos momentos, agradáveis, ou não...
acho que entendi a essência do texto.
E o Zé deve ser feliz no tempo dele, com suas experiências por mundos de tempos diferentes.

Luciana Cecchini disse...

Tempo, tempo, tempo. Um lugar comum, uma terra sem dono. Ou o dono de nossas terras. Viver ao seu lado é um virtude. Ser feliz é utopia. E utopia é um sonho. Mas um sonho bom!

Bjo!

Dauri Batisti disse...

Bonito texto Jacinta.
Que a beleza do texto se espalhe pelos seus minutos, dias, horas, semanas, meses, anos, vida.

Jorge Elias disse...

"o tempo é como é"

Amiga,

Vc esta arranjando tempo para aqueles passeios na praia?
Estou reincidindo no tema pois penso que essa atividade desperta minha inveja da minha amiga "Zé".

Abraços,

Jorge Elias

Anônimo disse...

Olá jacinta,
Muuuuito bacana a capacidade que você tem de brincar e trabalhar com as palavras expressando emoções, sentimentos...

Um grande bjo!!!
Lúcia Elena

Opuntia disse...

Cada um é feliz à sua maneira, não é mesmo? O Zé cria uma "realidade" só sua na qual ele pode até fazer um cruzeiro c/ direito ao show do Roberto.
E nós enquanto divagamos somos felizes( ou não?)

Parabéns pelo texto!

Anônimo disse...

Jacinta

Seu texto, em alguns trechos, faz lembrar Fernando Pessoa,no poema Liberdade.
"E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal, como tem tempo, não tem pressa..."
Então, "o tempo é como é". Muito bom.

Cris

Francisco Sobreira disse...

Jacinta,
Um texto de boa forma , cujo tema expõe a questão da lucidez e da fantasia desenfreada. E fica a pergunta: será que que vive melhor a pessoa que se aliena da realidade? Será? Grande Abraço.

Luis Eustáquio Soares disse...

e zé pode ser também zoe, e zoe é a animalidade, o animal humano, assim classificado por conter e exprassar, e viver, como pária, a transcendência que nos falta a todos.
belo texto, amiga e te convido a uma outra leitura
b
luis de la mancha.

Letícia disse...

Lindo texto, Jacinta. E melhor de tudo, todos nós estamos unidas e falando a mesma língua.

Bjs e se cuida.

Letícia

Josely Bittencourt disse...

O tempo e o Zé, e um Zé ao seu tempo...

Mas:

dois loucos no bairro

um passa os dias
chutando postes para ver se acendem


o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco


todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também

(Paulo Leminski)

rs

Bom, somos uma questão de tempo...

beijos, moça!

Lunna Guedes disse...

E o tempo nos faz assim, seres atordoados desejando imaginar o que afinal, o tempo diria de nós.
Abraços

Friendlyone disse...

Teu Zé parece com meu Genu (para os íntimos). Genu, GeruArino. Tenho certeza que brigariam pelos mesmos ideais...

Plinio Uhl disse...

Cada um de nós quarda uma realidade dentro de si. Entregar-se a ela pode ser covardia de encarar o mundo aqui fora ou coragem de assumir o mundo de dentro. Quem é mais são?

bjuz

Germano Viana Xavier disse...

E dizer do tempo que nos cria, e que nos alicerça e nos força a sermos sempre mais e sempre o melhor que podemos ser...

Tempo que revoluciona, que fortalece...

Um beijo no coração, querida!
Lendo-te, sempre...

Germano

Anônimo disse...

Olá, Jacinta.

Estou retribuindo sua amável visita e me encantando com suas palavras, sempre muito bem colocadas.
Em versos ou em prosa, passeei por aquí, permitindo que o tempo não interferisse no enorme prazer que sentí.
Sou também, a meu modo, um pouco como o teu Zé.
Abraço, carinho.

Madalena Barranco disse...

Oh, Jacinta, ir e vir e ainda equilibrar-se na lâmina do tempo é tarefa para gente como Jacinta, que escreve sobre o tempo e suas floradas. Seu estilo faz bem a essa leitora.

Beijos, querida. E muito obrigada pelo seu comentário em meu blog e leitura da coluna - a continuação deverá sair no final de março.

Anônimo disse...

Cada um é mundo em descoberta, hã? Um mundo cheio de histórias... Beijo.

Paulo Vilmar disse...

Jacinta!
Minha amiga! Que textos belos, inebriantes.
Beijos.