17.4.10

A revelação do ser através de Rascunhos do Absurdo:

os poemas transcendentes de Jorge Elias Neto

Gustavo Felicíssimo



No dia 07 de maio, sexta-feira, na Biblioteca Pública do Espírito Santo, o poeta Jorge Elias Neto lança seu segundo livro, “Rascunhos do Absurdo”, pela Flor & Cultura Editores.


Foi, para mim, motivo de enorme alegria receber de Jorge Elias Neto o convite para a preparação dos seus poemas objetivando a publicação deste compêndio que agora se faz materializado, o segundo livro de sua lavra, pois trata-se da obra de um poeta que, sobretudo, é um formidável esteta, criador de imagens cortantes, observador e crítico da condição humana. Entretanto, produzir um ensaio sobre uma obra que ajudamos a tornar realidade, ao contrário do que possa parecer, é um tanto dificultoso, pois há a necessidade de certo afastamento emocional do texto para se fazer uma análise imparcial do mesmo. Digo isso não para me resguardar contra algum elogio natural que possa vir a fazer, mas antes, para alertar o leitor acerca da qualidade dos poemas que possui em suas mãos.


Jorge Elias Neto, desde “Verdes Versos”, seguindo seu próprio dictum, chega a “Rascunhos do Absurdo” propondo uma poesia que se caracteriza por prescindir em grande parte da melodia, porém sem se descuidar do seu andamento, para centrar fogo, carregado de um arsenal reflexivo, na criação de imagens que se correlacionam com as idéias do autor, causando espanto muitas vezes e concordando conosco quando afirmamos que a poesia não é apenas um fenômeno de linguagem, mas também de idéias. Sua busca se inicia com uma questão ontológica basilar: o sentido do ser. Sua obra poética é marcadamente filosófica, metafísica e existencialista, partindo da realidade vívida e vivida para a apreensão de um sentido maior. Desse modo, o poeta constrói seus poemas tateando o indizível, em sua busca da ciência de desinventar (01 de janeiro de 2008), sem nunca perder de vista o que se tem a dizer.


Como médico cardiologista, Jorge enfrenta no seu cotidiano inúmeras situações limites entre vida e morte que ajudam a acentuar o caráter metafísico da sua poesia, e isso, para o autor, tornou-se uma questão de vida: trabalhar a idéia de morte e entender a multiplicidade de atitudes do homem frente a essa locomotiva que “sempre chega pontualmente na hora incerta[1]. Desse modo, em uma breve entrevista que nos concedeu, diz ele: Passei a entender a relevância desse entendimento na minha formação como homem. Li as reflexões nos Ensaios de Montaigne, n’O sofrimento do jovem Werther, de Goethe, Nietzsche, Kant, Camus e fui fazendo meu percurso


“Rascunhos do Absurdo” é composto por quatro capítulos: “Livro de Notas”, “O Estalo da Palavra”, “Gaza” e “O encantamento do poeta Maratiba”, dedicado a Miguel Marvilla, também poeta, amigo e incentivador de Jorge, falecido em seus braços, na emergência de um hospital. É uma poesia comprometida com o homem e com a vida, tecendo críticas a esse mundo moderno, pragmático e utilitarista.


O primeiro capítulo se configura por apresentar poemas com certo lirismo, mas nem por isso desprovidos de metafísica, são poemas que remetem à própria poesia ou à função do poeta – / barriga de aluguel (Ventre Vazio), à família, à afeição em diversas composições claramente dirigidas à amada, como em “Dever de Casa”, um poema imagético e sensorial, quase palpável, onde o poeta assegura Fazer por onde / sempre tê-la ao meu lado/ para dizer-te, sempre: / Eu Te Amo.


Suas palavras, sem qualquer prolixidade, tornam seus pensamentos consecutivamente compreensíveis, levando o poeta à busca de apurar seu discurso no sentido de transmitir o mais claramente possível seu enunciado, pois são plasmadas com coloquialidade, sem perder a elegância. É a necessidade de ser entendido e sua mensagem apreendida que servem de alimento necessário à sede do poeta.


O segundo capítulo do livro é marcado, notoriamente, por uma temática que reflete o estranhamento do homem no mundo, impregnado por um sentido de deslocamento frente à ruptura de valores da modernidade e à queda de paradigmas, antes institucionalizados e agora questionados ou até mesmo negados. É nessa atmosfera movediça da contemporaneidade que sobrevive o poeta. Sua lírica reflete o esvaziamento de valores do homem moderno, abandonado em si mesmo e desnorteado ante a desestabilização de verdades universais, como atesta o exemplar poema “A Prazo”:


Levem-me as horas

para os caprichos mundanos!

Já destaquei a etiqueta.

Tomei posse do indivíduo.

Será que não vêem

no meu ante-braço

o carimbo de “pago”?


Esse poema capta e revela o momento histórico da humanidade, em que se configura um homem solitário, em meio a um processo de massificação, reificação e desumanização das relações humanas. E por ser a poesia contemporânea a poesia do desconexo, do descontínuo, fragmentada, cujo discurso denuncia um mundo que se desestruturou, ao mesmo tempo é a poesia que busca, nesse mesmo mundo, uma nova construção de sentido para o homem, frente à angústia e ao cinismo, tratados com uma franqueza exemplar pelo poeta neste excerto do poema “Noir”:


A terra não tem nada

com teu descontentamento.

Ela é acima de qualquer suspeita.

É que a luz só atinge tuas costas.

Hoje, a estupidez não é mais um traço,

é um demônio que se agiganta.


Por ser a sua poesia uma denunciadora das mazelas do homem e contestadora da falta de valores, o poeta tornou-se um alijado no seu tempo, então Já que a palavra é uma puta: / rasguem o poema. / Já que a rima é farta e o poeta um estorvo: / que se recompense o primeiro idiota / a me cortar a carne (Balada da Carne).


Em “Gaza”, terceiro capítulo do livro, Jorge Elias Neto apresenta-nos uma poesia de forte apelo social e grande senso humano, preocupada com os últimos desdobramentos do confronto entre palestinos e judeus, fazendo coro à indignação que toma conta dos povos desde os tempos da criação do estado de Israel, em 1948, quando Gandhi se manifestou dizendo que


O que está acontecendo na Palestina, não é justificável por nenhuma moralidade ou código de ética। Certamente, seria um crime contra a humanidade reduzir o orgulho árabe para que a Palestina fosse entregue aos judeus parcialmente ou totalmente como o lar nacional judaico.


Hoje, quase seis décadas após, José Saramago se manifesta sobre o mesmo conflito, utilizando a imagem do franzino Davi que mata em combate o gigante filisteu, Golias, dizendo que


Aquele louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a "poética" mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestinos para depois negociar com o que deles restar.


O fato é que Israel tomou para si as terríveis palavras de Jeová no Deuteronômio: Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago, com isso suscitou uma sensibilização mundial em favor da causa palestina, inclusive por parte dos poetas. Notoriamente, o poeta mais importante nesse contexto é o palestino Mahmud Darwish (a quem essa parte do livro é dedicada), o precursor de uma geração de autores da vertente denominada “Poesia Palestina de Combate”, surgida após a ocupação de 1967, que inclui os palestinos Samikh Al Qassem, Fadwa Tukan e Tawfiq Al Zayad. Em “Gaza” a poesia de Jorge Elias Neto comunga e se amalgama ao canto desses tantos outros poetas em um grito uníssono, fazendo-se ouvir em todos os cantos do planeta, pois retratam os absurdos e os horrores desse conflito desigual e desumano.


Por detrás dos acontecimentos, o que percebemos, de fato, é a inteira ausência de Deus em uma guerra que se quer santa e que, na verdade, reforça no poeta (Jorge Elias Neto) a incerteza quanto às verdades seculares, como a crença em um Deus que já não é refúgio para suas angústias, pois morto está. O homem passa a ser o criador de suas verdades e realidades, porém completamente aturdido pelo sentimento de abandono, por isso diz-nos que Ao poema, cabe / despejar sobre o chão, / e na cara dos facínoras, / uma resma de dúvidas (A Praça), ao invés de bombas, deflagrando o absurdo do existir frente ao mistério. E refletindo sobre o engajamento de Darwish (que fora expulso de sua casa, com a família, pelo exército de Israel), Jorge refaz seu caminho, e na celebração do viver encontra sentido na atitude exemplar do poeta palestino que Não azulava as dúvidas com preces / e entendia a sujeira como um vício da realidade।


Enfim, pensar e sentir estão imbricados num propósito de induzir o homem à revelação da verdade do ser e ao conhecimento de si. A poesia, nesse ínterim, torna-se a expressão maior de significados do homem, transcendendo a superficialidade da expressão na busca de se exprimir o inefável. Nesse contexto, pautado nas questões essenciais que afligem o homem moderno, em que o ser se lança na investigação identitária de si mesmo e no descortinar do sentido da vida, pulsante na concretude do mundo, é que se enquadra “Rascunhos do Absurdo”, refletindo o espasmo do homem frente ao mundo por ele criado e sua busca na ressignificação da vida.


É certo que, com essa potência e consciência literária e de mundo, a poesia de Jorge Elias Neto enquadra-se neste momento, sem nenhum alarde, no rol daquilo que de melhor e mais significativo vem sendo produzido por nossos poetas contemporâneos. E ele sequer desconfia disso.

Que as Musas todas o guardem!





Gustavo Felicíssimo é poeta, pesquisador e ensaísta. Atua com preparação de textos e organização de livro para editoras e poetas. Edita o blog Sopa de Poesia, cujo endereço virtual é: www.sopadepoesia.blogspot.com



[1] Poema da Gare do Astapovo (Mário Quintana)

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