9.9.09

NO FIO DA NAVALHA: um caso de gente pacata

A meninada estava em casa, espalhada pelo quintal 4X12, cuidadosamente preparado pelo pai, escavando a terra dura, naquele lugar seco, com poucos moradores. O viver se dava muito mais ao ar livre, com os filhos dos vizinhos misturados aos filhos da casa, peteca, bambolê, bonecas de pano, cabra cega e pique esconde, na festa de sábado, com vista para a mata tendo como fundo o mar – bem distante – aonde a vista alcançava aquele que, ao olhar infantil, era um barquinho, brincando nas ondas. Aguçando a vontade de beleza nos dias, o sol, entrando pelas muitas frestas, abria o largo sorriso da primavera para a Gente pacata, cumpridora dos deveres, que tinha naquele lugar a certeza de ter um chão para encostar a cabeça e muitas incertezas sobre o futuro. Acostumados à tranqüilidade do interior, um pai e uma mãe, com filhos gerados noutra cidade e a incumbência de tornar os pequenos, pessoas de bem, num universo desconhecido e assustador. Por enquanto, eles estavam ali, ao redor da barra da saia. Mas, e depois? Só para contrariar a calmaria do cenário, um dos meninos sempre dava um jeito de escapar dos olhos de mãe. Exatamente ele, o mais “levado” acabara de aprontar mais uma de suas peraltices. Como para baixo todo santo ajuda, o caçula mandou a pedra de encontro à tigela na mão da menina que, do lado de fora, no quintal ladeirento, lavava as vasilhas (pratos, panelas, copos e talheres) utilizando duas bacias, uma para ensaboar e outra para enxaguar. O estrago foi feio. Quebrou a tigela, sujou a escassa água carregada morro acima em latas na cabeça e... falta grave aquela. Coisa muito séria. Do lado de cima, tudo continuava tranqüilo. Com gestos suaves, o chefe da casa, como um maestro que rege sua orquestra, concentrava-se no seu intento. A meninada por ali, a esposa com seus afazeres e tudo transcorria numa alegre tarde da década de 1970. Do lado de baixo, o outro chefe, irritado e decidido foi ter com o pai do menino para lhe contar o sucedido. Espumando de raiva, gritou, chamando o dono da casa. Muitos olhos arregalados o acompanharam, pois já sabiam o que vinha pela frente: adulto falou menino apanhou. E eis que, atendendo ao chamado, tranquilamente surge um homem, de calma expressão e voz pausada, dando os últimos retoques para afiar sua navalha e disse:

_ pois não chefe

O vizinho, apavorado com a recepção, desculpou-se pela amolação, disse que aquilo era coisa de criança e que não havia com o que se preocupar. Aos pulos se foi, num carreirão só, se aconchegar em seu barracão azul, o mais bonito do morro. O pai, sem entender nada, passou a navalha na outra face da pedra, ajeitou-a bem e continuou o ritual de se barbear. Era preciso ficar apresentável para a missa de domingo, pela manhã.

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Muitos anos depois...

Antes de partir, numa madrugada de setembro, com os filhos – hoje, mulheres e homens fazendo o seu caminho – reunidos em volta do seu leito, lembraram-se do feito e, pai e filhos riram das estripulias e do ex vizinho que, até hoje “pirambeira” pelo morro, acreditando que fora recebido por um homem bravo, querendo enfrentá-lo com o fio da navalha.


13 comentários:

lula eurico disse...

Abraço, abraço, abraço.

Tenho vindo pouco te ver... mas sempre q venho REFLORESÇO!

Francisco Dantas disse...

É um prazer voltar aqui e encontrar textos tão cativantes. Um abraço.

Giovanna Valfré disse...

Hahahahaha! Que bom ler a história que ouvi tantas vezes ao longo da convivência gostosa da "nossa" família. Bjs

Ilaine disse...

Linda história, Jacinta.
Nada melhor do que recordar e rir das aventuras outrora vividas.

Perdoe a demora e obrigada pelo carinho lá em casa. Amei seu comentário.

Abraço

Wellington Felix disse...

Adorei seus escritos, fiquei saudoso dos tempos, que podia se brincar livre, sem medo de balas perdidas e traficantes, e que o perigo era apenas um mal entendido.
rsrs. Saudade de suas visitas em meu blog

Francisco Sobreira disse...

Você narra um fato prosaico (real?) num estilo simples, coloquial e até com um toque de humor, que não é comum nos seus escritos. Bom, Jacinta, bom mesmo. Um abraço.

paulo disse...

Sempre observando e lendo e as vezes comentando.
Gostei do artigo Jacinta.

Elcio Tuiribepi disse...

Lendo esta estória lembrei da minha infãncia com meus irmãos, uma vez quebramos com uma bola de meia uma peça de enfeite que tinha sido presente de casamento de uma vizinha da minha mãe...caramba, aquilo deu o que falar e ainda levamos uns bufetes do meu pai, porque nos escondemos num lugar onde nossa mãe não conseguia nos pegar...rsrs...obrigado por me fazer lembrar desses bons tempos...um abraço n alma...bjo

Ana Lúcia. disse...

Jajá!
Que susto!
Quando cheguei, pensei ter sido remetida a blog errado...
Ainda não tinha visto a casa nova: nova cor, novo magnífico quadro. Paisagem de poesia que nunca termina...
E quanto aos pais e filhos: educar não tem receita! Tem "momento", "razão" e "coração"!
Gostei de montão desta saborosa leitura, está tão perfeita que as cenas formam-se naturalmente na mente enquanto os olhos ansiosos liam cada palavra!
Uma composição que anseia aquela mistura entre o ser e o ter, o crer e o poder, enfim, o realizar bem e com um sucesso que tenha continuidade em todas as idades!!
Lindo!
Deixo um beijãozinho e aquele abração apertadinho!!

Jens disse...

Hehehe, as aparências enganam.
Bela história, Jacinta, lembrei dos meus tempos de delinquência infantil - também tinha fascinação por exercer a nobre arte de atirar pedras nos outros.

Um beijo.

Claudinha ੴ disse...

Olá Jacinta! Adorei a história! Uma navalha, alguém valentão que na verdade se pelou de medo da mesma... Quantas atitudes não são interpretadas de maneira errônea assim? Mas o bom é que as crianças não levaram a surra e o valentão aprendu uma lição... Rsrs. Um beijo!

Canto da Boca disse...

(Deixa eu confessar: já fiz muitas dessas estripulias, Jacinta, jogar pedra, descer ladeira abaixo de bicicletas, jogar bola de gude, pião... Uma infância inesquecível. Bela narrativa essa sua, trazendo para nós as suas memórias infantis, obrigada por compartilhar, viu? Também dei risadas da história da navalha. Um beijo grande!)

Passageira disse...

De repente te vejo outra! Uma contista que abandona a bela prosa poética para se inserir em aventuras bem narradas! Que bom esta diversidade, viu? Gosto dos seus escritos - seja prosa ou poesia!
Beijoconas!!