9.2.09

FRAGILIDADE

Quando cheguei, senti no olhar a expectativa do próximo ato. A platéia, atenta, se espremia no espaço disputando um ângulo melhor. A cena, oculta, vivida apenas pelos atores no calabouço, suscitava especulações de como estaria a ação, já que ele fora contido depois de roubar um litro de óleo no supermercado, pular vários muros e terminar nos fundos do quintal da residência de três famílias. Os moradores do sobrado, assombrados com a peça inoportuna em palco particular, foram para a rua engrossar a multidão que, do lado de fora, aguardava ansiosa o ápice do deprimente espetáculo. Regozijai-vos, gritava a cena. O bicho fora domado. Eis que surge o perigo, amarrado com as mãos para trás, com o esquelético corpo pendendo para a direita, puxado pelos justiceiros que o levariam à autoridade local. Homens, mulheres, motos, bicicletas, crianças, sofrimento, sarcasmo... acompanham o cortejo numa morbidez escancarada, aproveitando ao máximo a oportunidade de ver, de perto, a miséria humana exposta em cada rosto, em cada riso, em cada comentário. E eu, nesse teatro do qual não quero participar, vejo-me autor, ator e platéia, amarrando e tendo as mãos amarradas, empurrando e sendo empurrada, alegrando-me e me entristecendo com mais esse show que presencio às três de um dia quente, muito quente, em horário de verão. Mundo cruel. À noite, no recesso do lar, o quinto ato em balas perdidas, brigas imbecis de terceiros determinam o corte de uma vida jovem e donos de castelo bem assombrados e com muita água fresca – a mesma água desperdiçada nas calçadas da fama – evidencia os escândalos, a violência e o terror que aguçam ainda mais a curiosidade pela morbidez e exibe uma das muitas conseqüências da fragilidade da Lei. Estamos todos adoecidos!? Meu Deus!

20 comentários:

Zeca disse...

É, Jacinta! Infelizmente somos parte integrante, sem escolha, do triste e deprimente espetáculo da vida em nossas cidades, em nosso pais. Existe forma de não o ser?

Beijos.

Jens disse...

Oi Jacinta.
O que descreves é uma realidade terrível que parece não ter fim. Porém, enquanto existir pessoas capazes de se estarrecer com esta situação, como você, há esperança de mudança.
Um beijo.

Cris disse...

Oi, lindinha...

Voce , eu, e mais algumas dúzias , ainda temos a capacidade de sofrer , ficarmos indignados . E a maioria da platéia atuante que nem isso mais?

beijos e boa semana, querida.

Anônimo disse...

Acho que estamos doentes, sim, Jacinta. E um dos sintomas é essa ânsia pelo que acontece com os outros, não o bom, mas o mal.

Anônimo disse...

Não sei que nome se dá a esta doença, mas é fato que estamos. Porque acostumar o olhar a ponto de passar a não ver é doença que vai muito além dos olhos, né?
Belo texto, querida. Sensibilidade explodindo em indignações!
Beijocas

Soninha disse...

Olá Jacinta!
Agradeço imensamente por sua visita lá no Roda de Prosa.
Chego lendo esta sua crônica linda!
Entendo que, mesmo causando dor em nós, esta situação deve servir para engrossarmos as fileiras dos que querem mudanças, efetivamente.
Só o fato de não sermos coniventes com estas cenas já faz diferença.
Acredito que a grande mudança humana, no sentido moral, se dará através da educação.
Precisamos ensinar isto aos pequenos e, também, aos crescidos.
A humanidade tem jeito sim. Cabe a cada um de nós fazermos nossa parte.
Gostei muito, Jacinta.
Excelente semana a você.
Muita paz! Beijossssssssss

dácio jaegger disse...

Penso, querida, Jacinta que quem procura acha, nem que seja chifre em cabeça de cavalo, um adágio, e sábio, e sentir-se visitado pelo astro-rei pode ser uma solução magnífica nos meneios da vida , eis que em seu passeio gera ventos que nos fazem escutar os murmúrios que frestas traduzem como mensagens de paz e íntima alegria pessoal. Há então que interpretar o sentimento de paz como a autêntica comunhão da luz interior com a exterior. E, ao caminho! mesmo com pedras, pois elas deverão ser os degraus para alçar-se em voos serenos entre os amigos que faz ou ceciliando altaneira – do pequeno périplo./Beijos

dácio jaegger disse...

Sobre a Fragilidade diria que a “ humanidade” dos homens há muito é doente e piora a olhos vistos. Essa gente, nós, que escravizou os de sua raça, raças outras (se elas existem) e animais; que sentiu prazer em ver seus semelhantes trucidados sob clavas e espadas, que entrou em orgasmos quando prisioneiros cristãos eram devorados por feras, que morreu aos magotes construíndo pirâmides ou a “muralha da china” , que trucidou milhões de “homo nativus brasilis”, astecas, incas e maias, que tentou apagar um povo ao extinguir seis milhões de seus representantes, que destruiu Pearl Harbor, que bombardeou atomicamente Nagasaki e Hiroshima, que aniquila a pauladas filhotes de foca por suas peles, que dizima florestas e florestas atendendo a explosão demográfica do planeta é frágil no que parece ser seu melhor patrimônio, a mente. Seu grito querida, é silencioso e tocante, um lamúrio que acompanho, mais não posso fazer. Beijos

Paula Barros disse...

Cenas desse tipo são frequentes e deprimentes. Ainda acho deplorável os programas de tv que exploram esses assuntos, repetindo exaustivamente.

bjs

Anônimo disse...

O mais triste é saber que esse espetácula se passa a todo momento em nossas ruas. Enquanto isso, os "noosos" gestores passeiam e fazem vista grossa à violência no país, onde não existe mais nem síotios, nem povoados tranquilos. Beijo.

Carla disse...

Neste palco todos somos protagonistas...

Mary disse...

Sinto-me tão frágil diante de tantas atrocidades que às vezes me recolho no casulo e só olho pra dentro. Então percebo que ainda existe gente boa, querendo o bem e fazendo o melhor que podem...
Resta uma esperança, enfim.
Beijos meus pra ti.
Adoro te ler sempre.

Dauri Batisti disse...

Tem um ar de crônica e um quê de poema. No entanto, como crônica - muito bem escrita - faltou uma explicitação maior do que se trata no texto. Acho que então ficaria perfeito. Mas, pra todo efeito o texto está muito bonito.

dade amorim disse...

É verdade, Jacinta, a vida não está fácil. Parece que adoecemos mesmo - ou nos acomodamos. Mas ainda podemos ser surpreendidos por um fato novo que mude esse estado de coisas.
Beijo

Tiago Soarez disse...

Jacinta

Que saudade, viu!

Nunca mais te visitei, nunca mais te recebi para um café...

Voltei a te visitar, pq senti falta de seus belos textos e desse blog tão leve.

Sobre esse post: li algo muito semelhante ao q vc escreveu em um outro blog que costumo visitar. Confesso a você que sobre esse tipo de assunto eu nunca sei reagir muito... os comentários simplesmente não saem e a única coisa que faço é refletir sobre tudo isso.

Beijo grande

Anônimo disse...

Jacinta, minha doce amiga, teus textos continuam a nos trazer reflexões várias, a nos instigar, a procurar fazer alguma coisa que nem sabemos o quê, apesar da indignação que cresce a cada dia com esta pintura da vida que a realidade nos entrega dentro de uma crueza que assusta.

Estou de volta, após um prolongado período ausente, não mais no CARTAS, mas neste cantinho: http://meirelesbeatriz.blogs.sapo.pt, sempre a falar das coisas do coração e onde espero continuar merecendo o prazer de tuas visitas.

É bom estar de volta! É bom visitar os espaços tão acolhedores e de leitura tão preciosa quanto a tua!

Fica minha saudade num beijo carinhoso.

Anônimo disse...

Querida Jacinta. Um texto bem escrito, que deixa escapar as emoções diante da cena deplorável, que provoca sensações contraditórias.
É assistida ao vivo, mas, se prolonga depois nos noticiários...que entram pelas nossas residências.Uma realidade que nos pertence a todos, portanto.
Lamento sempre quando me deparo com essas narrativas, mesmo tendo o sabor da estética que eu aprecio.
Beijos, beijos.
Dora

Paulo Vilmar disse...

Jacinta!
E nós aí, na maioria das vezes atores em peças que nem de longe gostaríamos de atuar...
Beijos.

eder ribeiro disse...

longe de ser, o que somos senão reflexo do ter, por isso toda essa violência, pq para ser é necessário ter, e nem todos tem condições de ter. bjos.

ex-controlador de tráfego aéreo disse...

Oi Jacinta!

Valeu pelo comentário.

Você narra uma cena parecida com algumas que já presenciei no Rio e onde moro agora. Para ser preciso, foram duas. Uma na infância e outra com minha família, filhos e esposa. Em ambas pude concluir que a vida humana, em determinadas circunstâncias sociais, vale menos que um centavo de real. Mas, também fizeram-me ver que a indignação pode se manifestar de várias e criativas formas e, por vezes, de onde menos se esperava. O que importa é que o ser humano sempre será capaz de surpreender; mesmo que quando isso parece impossível de acontecer.

Um beijo com carinho!!!